Por Washington Castilhos, do Rio de Janeiro
Agência FAPESP - Para o sociólogo Michel Misse, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o que cidades como São Paulo e outras no país estão experimentando é um processo de guerra particular entre polícia e bandidos. “Chegamos a uma radicalização excessiva entre policiais e criminosos”, afirma.
Misse é autor do primeiro estudo sociológico brasileiro sobre delinqüência juvenil, publicado pelo Tribunal de Justiça do então Estado da Guanabara, em 1973. Em 1979, lançou Crime: o social pela culatra, ensaio pioneiro sobre o crescimento da criminalidade no país.
O sociólogo acaba de lançar Crime e violência no Brasil contemporâneo, num momento em que a violência é, mais uma vez, um assunto que está na ordem do dia. O livro reúne ensaios e pesquisas feitos por ele nos últimos dez anos sobre o tema.
Para Misse, existem diferentes níveis de organização no mundo do crime, mas as facções não são organizadas. “Não existe uma organização vertical e coesa no mundo do crime. É uma relação muito mais horizontal, como torcer para um time”, compara.
Em entrevista à Agência FAPESP, o sociólogo fala das mudanças no padrão da criminalidade e na prática policial nas últimas décadas. O sociólogo alerta também para o fascínio que o crime exerce sobre os jovens. “Existe uma sedução que é inerente à criminalidade”, afirma.
Agência FAPESP - Como entender o que está ocorrendo atualmente em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro?
Michel Misse - Estamos sofrendo um processo de guerra particular entre polícia e bandido. O bandido está matando o policial pelo ódio. Ao personalizar a questão, cria-se no bandido um ódio particularista e pessoal. Tem também a desmoralização da Polícia Militar junto à população e inclusive aos bandidos. Virou um círculo vicioso, porque violência gera violência.
Agência FAPESP - O crime é mesmo assim tão organizado?
Misse - Existem diferentes níveis de organização. O Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) são facções de redes de quadrilhas. O indivíduo que se diz “membro” tem uma identidade que o auxilia em determinadas circunstâncias, como quando ele vai preso. Lá, ele diz: “Sou do CV”, e isso lhe confere um certo privilégio. Não vai apanhar nem ser violentado. Mas ele não faz necessariamente parte da organização. Ele está disposto a obedecer as ordens vindas, mas isso não quer dizer que sejam organizados. Você pode torcer para um time sem fazer parte dele. Quando tem jogo, fica do lado da torcida e se identifica com ela. Pode até ir ao clube se for convocado para uma atividade só para torcedores daquele time. Essa comparação representa bem a idéia de que não existe uma organização tão vertical no mundo do crime, tão coesa. É uma relação muito mais horizontal, como torcer para um time. O problema é que a criminalidade está sendo obrigada a se capacitar. São pessoas inteiramente motivadas.
Agência FAPESP - A separação das facções nos presídios foi uma boa saída?
Misse - Diminuiu a matança, mas fortaleceu as organizações criminosas. Na medida em que você separa presos de uma determinada organização, você reconhece a existência delas.
Agência FAPESP - Que fatores sociais têm ajudado para esse aumento na violência e na criminalidade?
Misse - A intensa desigualdade social em relação aos direitos, a má distribuição de riquezas, a falta de acesso à justiça, as terríveis condições de vida da população, os baixos salários para uma boa parte dos trabalhadores. Aliado a isso tudo está o fato de uma parcela de jovens não querer ser como seus pais.
Agência FAPESP - Como assim?
Misse - Os jovens estão mais vulneráveis à criminalidade, não querem viver uma vida inteira com baixos salários e baixa qualidade de vida como seus pais. O crime exerce uma sedução sobre os jovens. Existe uma sedução que é inerente à criminalidade.
Agência FAPESP - O sr. começou a desenvolver estudos sobre violência e criminalidade na década de 1970. O que mudou de lá para cá?
Misse - O padrão da criminalidade mudou muito. Houve um fenômeno que podemos chamar de acumulação social da violência. A violência vem crescendo há décadas. Para se ter uma idéia, na década de 1950 a taxa de homicídios dolosos no Rio de Janeiro era duas vezes maior que a de Nova York. A idéia de cidade maravilhosa era errônea. Era maravilhosa sim, mas só na zona sul. Em relação aos tipos de crime, até os anos 1970, a principal forma de crime era o furto, e isso significava entrar na casa de alguém com uma chave mestra e levar coisas sem que os moradores estivessem em casa. Daí em diante, o roubo começa a crescer, com o uso da violência. Começa-se a assaltar com a mão armada. O crime baseado na astúcia deu lugar ao crime baseado na violência. Deixa-se de “bater” carteira para se assaltar à mão armada. No final da década de 1970, os bandidos foram transitando dos assaltos a bancos para o tráfico, depois do barateamento da cocaína e sua entrada no morro.
Agência FAPESP - Para a polícia, o que significou essa mudança no padrão da criminalidade? Ela mudou também?
Misse - Os policiais foram levados a matar. Com a política de matar ladrões, instaurava-se uma nova lógica no mundo do crime. Já se sabia, desde a década de 1960, da falência do sistema carcerário brasileiro, com problemas como superlotação e falta de controle de presos. Uma das formas de conter isso era o chamado “esculacho”. Essa precariedade no sistema carcerário favoreceu o surgimento e o fortalecimento das facções criminosas.
Agência FAPESP - Em relação às décadas anteriores, a delinqüência juvenil está diferente hoje, com crianças aparecendo em documentários de televisão carregando armas?
Misse - Essa já é uma geração que cresceu com o tráfico. O que temos hoje são crianças criadas num ambiente de muita violência. A violência está incorporada em sua criação, em sua rotina. Atualmente, cerca de 300 mil jovens entre 12 e 19 anos não estão na escola nem trabalham. Eles são vulneráveis. Talvez 10% entrarão na criminalidade. Mas esse número se renova a cada ano.
Agência FAPESP - As perspectivas, então, não são boas?
Misse - Não vejo luz no fim do túnel. A própria população defende um conceito de tolerância zero. Eu acredito em alternativas para esses jovens. Eles precisam de trabalho, lazer e educação.