Reunião de pedir Miguel Lucena
Eita Luanda para se parecer com a Bahia! O povo tem um jeito de se fazer compreender, as mulheres dirigem olhares soteropolitanos, os empregados protestam em silêncio, a grandeza se ergue de quem tira alegria da dor. Aliás, é tudo ao contrário: a Bahia é que se parece com Angola. Esse olhar atravessado, esse calundu, esse semba, essa quizomba, isso não é coisa da Bahia, meu amigo. É coisa de Angola, só que a Bahia manteve, aperfeiçoou, abrasileirou, preservou, conservou muito do que a colonização e a guerra, por aqui, fizeram o malefício de destruir. Vi gente a dançar quizomba. É um canto romântico, com algumas quedas para a chula de Santo Amaro, na Bahia. As mulheres grudam-se nos homens e vice-versa. Quase não se sai do lugar. De quando em vez, umas umbigadas lentas, como se toda a força da África se friccionasse num toque de centímetros. Vi também uma reunião de pedir. Naquele mesmo prédio da Avenida Amílcar Cabral – de que já falei antes -, pediram a Danlove, o intermediário, para, no andar térreo, reunirem parte da família de uma noiva que estava a ser pedida em casamento. Tal acontecimento é chamado, por aqui, de alambramento, ou reunião de pedir. É um evento no qual a família da noiva apresenta ao pretendente a lista de exigências a ser cumprida pela família do noivo. Estava a sair (sem o gerúndio, para me acostumar com as coisas daqui) para o trabalho, às 8h30, quando deparei com aquela reunião. Quase 50 pessoas na sala do térreo, umas velhas parecidas com mães-de-santo, vestidões azuis cintilantes, correntes de contas, homens, mulheres e crianças. No canto, um rapaz espremido, com um caderno roto, a anotar os pedidos: três metros de pano da costa; uma cabra leiteira; duas grades de gasosa (refrigerante), cinco de cerveja; cinco conjuntos de roupa; um dia de churrasco (frango assado com sumo, ou suco) e música, com banda que toque a música brasileira “Atoladinha”. - O que é isso, seu Danlove? – perguntou Raimundo Mazzei, jornalista baiano em atuação nas terras da Rainha Nzinga. – É reunião de condomínio? - A mamã de quem? – questionou Danlove, preocupado em vender seus refrigerantes contrabandeados. O motorista Francisco, de origem lingüística quimbundo, foi quem esclareceu a situação: tratava-se de uma reunião pré-noivado, reunião de pedir, na qual a família da noiva, para aceitar o casamento, faz uma série de exigências. É um dote ao contrário do que se conhece no Brasil. Aqui, em vez da família da noiva, é a do noivo que tem de arcar com despesas pré-estabelecidas para que ocorram as núpcias. E a reunião se estendeu por todo o dia. À noite, quando voltei de algumas palestras, encontrei as velhas animadas por vinhos de mesa e os jovens a dançarem quizomba e semba numa quadra ao lado do prédio. Assavam churrascos de gato, queijo e milho. Deixaram-me com água na boca e a saudade de Princesa, da fogueira acesa de São João, do meu velho pai, chapéu de massa quebrado na testa, a fazer compadrios com a vizinhança. Vi o mundo com os olhos de quem voltou à terra, como se, por vias transversas, morresse e ressuscitasse ao mesmo tempo: de lá viestes e para lá voltarás.
Miguel Lucena – Delegado da Polícia Civil do DF e Jornalista