sexta-feira, junho 23, 2006
6) MAIS BRONCA / César Maia
Data:
06 de setembro de 2001
Editoria:
Opinião - p. 9
Carta aberta ao Itamarati
Cesar Maia
Erros e desvios ocorrem, eventualmente, em qualquer órgão público. Mas alguns, pela
excelência e pelo exemplo histórico, não podem se permitir que graves desvios passem em
brancas e opacas nuvens, como se nada tivesse acontecido. Esse é o caso do Itamarati, o
nosso Ministério das Relações Exteriores, que tanto orgulha a todos nós, brasileiros. É
como se o Visconde do Rio Branco vivesse em todos os momentos e em cada um de seus
atos. Mas há desvios de finalidades que, se não forem questionados e redirecionados,
terminarão por deixar registros, rastros e marcas que amanhã poderão estimular ações
análogas, por mais absurdos que tenham sido. Ou pior: atingir o próprio caráter e a
identidade da instituição.
Esses desvios não podem passar por passar e ficar no esquecimento por ficar. Repito: não
podem e não devem. Em casos assim, o Itamarati deve abertamente investigar e formalizar
a sua indignação em nome de todos nós. E por que não incluir esses fatos na formação de
seus novos quadros, nas aulas do Instituto Rio Branco, para gritar a todos os ventos e a
todos os cantos que nunca mais - mas nunca mais mesmo - um fato como esse voltará a
acontecer? Mesmo que seja um fato ocorrido há 28 anos. Exatamente isso: 28 anos.
Há 28 anos, a embaixada do Brasil no Chile desonrou a tradição do Itamarati. É o que se
sabe e o que se conta dentro e fora do Itamarati. Diplomatas brasileiros em todo o mundo
ainda se envergonham dos fatos, mesmo os que ainda não estavam nos seus quadros
naqueles tempos de chumbo. Após a vitória eleitoral do presidente Salvador Allende,
estabeleceu-se o pânico entre as famílias chilenas de alta renda. Afirmam muitos que os
porões e os armários de nossa embaixada em Santiago foram usados e abusados para
guardar jóias, quadros, casacos de pele e afins, que pertenciam às platinadas pessoas da alta
sociedade local. Era como se a nossa embaixada - chão pátrio - fosse transformada em mero
cofre-forte de um banco qualquer.
E mais. No auge da conspiração que tramava a deposição do presidente eleito do Chile,
nossa embaixada teria sido o cenário onde se reuniam os conspiradores, num ato de
intervenção em assuntos internos de outro país. Digamos que, se contextualizarmos o fato,
ele fazia parte de um mundo com as características de então. Mas não foi só isso. Os que ali
estavam - ou os que desses souberam e ouviram - afirmam que se foi muito mais longe.
Lembram, entre envergonhados e indignados, que se aproveitando de nossa data cívica
mais importante - 7 de setembro, o Dia da Independência -, realizou-se na embaixada
brasileira a reunião que definiu, decidiu, preparou e detalhou o golpe. Encobertos pelo
aperto de mão que dariam ao Brasil e ao nosso povo, na pessoa do embaixador, para
comemorar a independência de nosso país, foi-lhes previamente preparada uma sala para se
reunirem e desenharem as violentas ações que ocorreriam quatro dias depois.
Ou seja: nossa embaixada foi transformada em um porão clandestino de conspiradores,
numa casamata qualquer, numa sala de guerra, com todo o esfumaçamento cênico que lhe
cabe. No andar de cima - ou na sala ao lado, sei lá - a pátria recebia os cumprimentos.
Pessoalmente, o próprio embaixador teria servido o desonroso cafezinho em meio a bombas
potenciais e ainda imaginárias, que menos de uma semana depois, ao se transformar em
realidade, alterariam a vida - e ceifariam tantas outras - de um povo amigo. O nosso Barão
do Rio Branco dizia, em sua época e certamente em duplo sentido, que Brasil e Chile
desenvolviam uma amizade sem limites. Não sabia, porém, que os limites estariam em
nossa própria embaixada, décadas depois.
Algumas testemunhas oculares daquela história contam - com cínico e dourado prazer -
que, dias depois, nosso embaixador teria ido ao sofisticado e aristocrático Club de La Unión
de Santiago. Ao abrir a porta e entrar, ele teria aberto o peito como um tenor de subúrbio e,
a todo o pulmão, berrado: ''Ganhamos!'' Ganhamos o quê? De quem, cara pálida?! Essa
história grotesca e conhecida teria gerado, muitos anos depois, um bem revoltado brado de
indignação entre os presidentes do Brasil e do Chile, no minuto seguinte à vitória de Lagos.
Pelo telefone, eles repuseram na direção certa, e via satélite, o mesmo ''ganhamos''.
Aquela foi uma farsa inadmissível com desdobramentos de tragédia que não pode ficar por
isso mesmo, como se o tempo pudesse apagar vergonha tão grande. É claro que ninguém
imagina que se possa punir, enquadrar ou cortar aposentadorias e pensões de quem quer
que seja. Até porque seria diminuir, transformando em migalhas monetárias, fato tão
ultrajante. Mas investigar, julgar e fazer os registros em letras de fogo nos livros mais
grossos do Itamarati, ah!, isso sim é necessário que se faça. Se não for feito, certamente
esse órgão ímpar de nossa administração pública, que tanto orgulho deu e dá aos
brasileiros, continuará existindo, mas continuará com uma marca escarlate nos lençóis da
história, com a honra perdida da forma mais desonrosa possível. Ainda é tempo. Sempre é
tempo. Mesmo 28 anos depois, exatamente na semana em que comemoramos a mesma
festa pátria.
* Cesar Maia é prefeito do Rio de Janeiro