Para o Carlos Muller, da Fiocruz, experimentos com animais ainda são imprescindíveis à ciência (foto: Fiocruz) |
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Agência FAPESP - Um projeto de lei tem levado a debates acirrados no Rio de Janeiro. O texto, que proíbe o uso de animais em pesquisas científicas, foi aprovado em março pela Câmara de Vereadores, mas vetado no mês seguinte pelo prefeito César Maia, que o considerou inconstitucional.
A proposta (PL 325/2005), de autoria do vereador e ator Cláudio Cavalcanti (PFL), voltou para a Câmara, onde os vereadores deverão decidir se mantêm ou não o veto do prefeito. O impasse tem deixado em alerta representantes de instituições de pesquisa como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e as universidades Federal e Estadual do Rio de Janeiro.
Há duas semanas, a Fiocruz recebeu um grupo de vereadores para mostrar de que forma é feita a experimentação animal. Nesta terça-feira (20/6), está marcada uma audiência pública na Câmara entre cientistas e legisladores.
O projeto de lei está baseado no argumento de que todos os seres vivos têm direito à vida e não podem ser submetidos à dor ou à tortura. Além disso, segundo o texto, pesquisas com animais para o desenvolvimento de remédios e vacinas podem representar perigo a seres humanos. Entre os argumentos está uma lista de 50 medicamentos, usados no tratamento de diversas doenças como artrite, insuficiência cardíaca, cardiopatias e depressão, e que já teriam causado mortes e outros efeitos danosos a humanos.
“O modelo animal não é confiável. Animais não devem servir de parâmetro para determinar o que vai acontecer com medicamentos e vacinas quando os seres humanos forem a eles submetidos”, disse Maria Lucia Frota, assessora do vereador Cláudio Cavalcanti, à Agência FAPESP.
Para o veterinário Carlos Muller, coordenador do Centro de Experimentação Animal do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), a proibição do uso de animais em pesquisa acabaria por prejudicar tanto humanos como animais.
“A experimentação é necessária até mesmo na medicina veterinária. Hoje, temos imunizantes contra pólio, sarampo e hepatite que foram testados em modelos animais. Medicamentos de uso veterinário são experimentados em animais para depois serem aplicados contra doenças como a febre maculosa. A vacina anti-rábica precisa de experimentação animal para benefício do próprio cão”, argumenta o veterinário.
Em entrevista à Agência FAPESP, Muller, que trabalha na Fiocruz há 32 anos, fala da importância da experimentação animal, esclarece mitos em torno do assunto e explica por que, mesmo com a existência de outras alternativas, o uso de animais em pesquisas é necessário. Agência FAPESP - O principal argumento dos que são a favor da aprovação do PL 325 é que o modelo animal não é confiável no desenvolvimento de medicamentos e vacinas para seres humanos. Pode-se responsabilizar as pesquisas com animais pelo fato de alguns remédios terem causado mortes em humanos? Carlos Muller - Se você comparar o número de medicamentos testados em animais que causaram mortes em pessoas nas últimas décadas e os que salvaram vidas humanas, com certeza esse segundo é muito maior. Além disso, é preciso destacar que, atualmente, o modelo animal é diferente daquele usado nas décadas de 40 ou 50, por exemplo. Temos vacinas contra a hepatite e contra doenças infantis, como a pólio e o sarampo, principalmente graças à experimentação animal.
Agência FAPESP - O projeto de lei do vereador Cláudio Cavalcanti tem como base o conceito do direito dos animais à vida e de que eles não poderiam ser submetidos à dor e à tortura. Muller - O texto fala em proibir “a vivissecção assim como o sofrimento físico e psicológico dos animais”. É preciso saber interpretar os termos. As pessoas acham que vivissecção é um corte de cima a baixo no animal, e não é. O termo é usado para designar qualquer corte. Além disso, o procedimento não é feito sem a presença de um veterinário e sem anestesia para atenuar a possibilidade de dor. O conceito de animal descrito no texto do projeto também é um problema, pois não está especificado. O mosquito, por exemplo, é animal. Quando capturamos um deles, seja vetor da dengue ou da febre amarela, praticamos a experimentação animal. O barbeiro é outro exemplo. É o vetor da doença de Chagas, então temos de estudá-lo para entender a doença. E quanto ao sofrimento físico e psicológico citado no texto, como é possível avaliar tal estado em um mosquito ou camundongo?
Agência FAPESP - Que animais são usados em pesquisa? Muller - A maior parte da pesquisa básica não usa animais. E é importante enfatizar que 90% dos animais usados em pesquisas são roedores, como os camundongos, e cerca de 8% coelhos. Os primatas representam menos de 1%.
Agência FAPESP - Qual a importância disso para a medicina veterinária? Muller - A experimentação é fundamental para a própria preservação animal. O principal foco de um jardim zoológico, por exemplo, é a preservação. Existem procedimentos cirúrgicos e medicamentos de uso veterinário que foram testados em animais. A vacina anti-rábica veterinária precisa da experimentação animal para beneficiar cachorros. Se acabarmos com ela, vamos prejudicar tanto humanos como animais.
Agência FAPESP - Existem alternativas? Muller - Há o cultivo de células humanas e animais e o ovo embrionado.
Agência FAPESP - Porque ainda não se pode substituir o uso de animais por métodos como esses? Muller - Por que nem todas as células dão resultado. A experimentação animal é em média 60% mais cara que outras alternativas. Então, por que a manteríamos se não fosse absolutamente necessária? Um dia a experimentação animal acabará, isso é um desejo de todo mundo. A Comunidade Européia havia estabelecido o ano de 2000 como o fim do uso de animais em pesquisas, só que o prazo foi esticado para 2015. O único país do mundo no qual o direito do animal está garantido constitucionalmente é a Alemanha, mas mesmo lá se pratica a experimentação animal. O país que não a realiza não faz pesquisa.
Agência FAPESP - Os ambientalistas afirmam que a experimentação animal fere a lei 9605/98. Muller - Essa é uma lei de crimes ambientais, não serve para experimentação. Proibir o uso de animais em pesquisas e no controle de qualidade é que é inconstitucional, uma vez que vai contra a resolução 96, a qual assegura que antes de testes de uma vacina ou medicamento em seres humanos o procedimento deve ser feito em animais.
Agência FAPESP - No Brasil há leis de regulação de experimentação animal controle pelas instituições? Muller - Existem projetos de lei, mas que estão parados no Congresso.
Agência FAPESP - Como ela é feita na Europa? Muller - Lá existem as comissões de ética, cuja presença está prevista por lei. Também há políticas editoriais e agências de fomento que não liberam financiamento se o pesquisador não for licenciado. No Brasil, seria necessário criar um conselho, em nível federal, que deliberasse sobre a experimentação animal e obrigasse as instituições a criar suas comissões de ética.
Agência FAPESP - Algumas instituições de pesquisa brasileiras têm comissões de ética que regulam a manipulação de animais. Quais são os resultados práticos dessa comissão na Fiocruz? Como ela funciona? Muller - No Instituto Oswaldo Cruz conseguimos diminuir em muito o uso de animais em pesquisa nos últimos cinco anos, a partir da instalação de uma comissão de ética, em 1999. O pesquisador tem que estar licenciado e esclarecer o tipo de pesquisa que irá fazer com o animal, senão a pesquisa não é liberada. Um dos termos questionados pela comissão é: “Haverá procedimento cirúrgico?” Até os excrementos são autoclavados [para descontaminação]. Os animais são criados em biotérios e requisitados pelos biotérios de experimentação nos quais eles serão experimentados.
Agência FAPESP - Aqueles que apóiam o movimento pela aprovação do PL 325 afirmam que o que está na base das pesquisas que utilizam animais em testes é o cartesianismo e a idéia de que o animal está no planeta em função do homem. Muller - Não acho que os cientistas pensem assim, mas não temos como negar que os animais são uma grande ajuda. Infelizmente, no momento não temos como substituí-los. Parar as pesquisas com animais seria parar o avanço da ciência.